Vale a pena lembrar que Patch Adams, médico americano, defensor de uma medicina mais humana, (imortalizado pelo filme O Amor é Contagioso, com o ator Robin Williams). Quando esteve no Brasil, no programa Roda Viva (TV Cultura), fez a seguinte observação, ao ouvir uma das entrevistadoras dizer que as Industrias Farmaceuticas queriam nos curar... Ele simplesmente retrucou: "Discordo desta sua afirmação, pois as Industrias de Medicamentos, querem vender remédios e não curar as pessoas."




MARKETING DOS LABORATÓRIOS FARMACÊUTICOS
Ou: dá muito lucro dizer às pessoas saudáveis que estão doentes

Os vendedores de doenças

Ray Moynihan, Alan Cassels


As estratégias da indústria farmacêutica para multiplicar lucros espalhando
o medo e transformando qualquer problema banal de saúde numa "síndrome" que
exige tratamento.Há cerca de trinta anos, o dirigente de uma das maiores
empresas farmacêuticas do mundo fez declarações muito claras. Na época,
perto da aposentadoria, o dinâmico diretor da Merck, Henry Gadsden, revelou
à revista Fortune seu desespero por ver o mercado potencial de sua empresa
confinadosomente às doenças. Explicando preferiria ver a Merck transformada
numa espécie de Wringley's - fabricante e distribuidor de gomas de mascar
-, Gadsden declarou que sonhava, havia muito tempo, produzir medicamentos
destinados às... pessoas saudáveis. Porque, assim, a Merck teria a
possibilidade de "vender para todo mundo". Três décadas depois, o sonho
entusiasta de Gadsden tornou-se realidade.


As estratégias de marketing das maiores empresas farmacêuticas almejam
agora, e de maneira agressiva, as pessoas saudáveis. Os altos e baixos da
vida diária tornaram-se problemas mentais. Queixas totalmente comuns são
transformadas em síndromes de pânico. Pessoas normais são, cada¼col1 vez mais
pessoas, transformadas em doentes. Em meio a campanhas de promoção, a
indústria farmacêutica, que movimenta cerca de 500 bilhões dólares por ano,
explora os nossos mais profundos medos da morte, da decadência física e da
doença - mudando assim literalmente o que significa ser humano.


Recompensados com toda razão quando salvam vidas humanas e reduzem os
sofrimentos, os gigantes farmacêuticos não se contentam mais em vender para
aqueles que precisam. Pela pura e simples razão que, como bem sabe Wall
Street, dá muito lucro dizer às pessoas saudáveis que estão doentes.


A fabricação das "síndromes"


A maioria de habitantes dos países desenvolvidos desfruta de vidas mais
longas, mais saudáveis e mais dinâmicas que as de seus ancestrais. Mas o
rolo compressor das campanhas publicitárias, e das campanhas de
sensibilização diretamente conduzidas, transforma as pessoas saudáveis
preocupadas com a saúde em doentes preocupados. Problemas menores são
descritos como muitas síndomes graves, de tal modo que a timidez torna-se
um "problema de ansiedade social", e a tensão pré-menstrual, uma doença
mental denominada "problema disfórico pré-menstrual" . O simples fato de
ser um sujeito "predisposto" a desenvolver uma patologia torna-se uma
doença em si.


O epicentro desse tipo de vendas situa-se nos Estados Unidos, abrigo de
inúmeras multinacionais famacêuticas. Com menos de 5% da população mundial,
esse país já representa cerca de 50% do mercado de medicamentos. As
despesas com a saúde continuam a subir mais do que em qualquer outro lugar
do mundo.


Cresceram quase 100% em seis anos - e isso não só porque os preços dos
medicamentos registram altas drásticas, mas também porque os médicos
começaram a prescrever cada vez mais.


De seu escritório situado no centro de Manhattan, Vince Parry representa o
que há de melhor no marketing mundial. Especialista em publicidade, ele se
dedica agora à mais sofisticada forma de venda de medicamentos: dedica-se,
junto com as empresas farmacêuticas, a criar novas doenças. Em um artigo
impressionante intitulado "A arte de catalogar um estado de saúde", Parry
revelou recentemente os artifícios utilizados por essas empresas para
"favorecer a criação" dos problemas médicos [1]. Às vezes, trata-se de um
estado de saúde pouco conhecido que ganha uma atenção renovada; às vezes,
redefine-se uma doença conhecida há muito tempo, dando-lhe um novo nome; e
outras vezes cria-se, do nada, uma nova "disfunção". Entre as preferidas de
Parry encontram-se a disfunção erétil, o problema da falta de atenção entre
os adultos e a síndrome disfórica pré-menstrual - uma síndrome tão
controvertida, que os pesquisadores avaliam que nem existe.


Médicos orientados por marqueteiros


Com uma rara franqueza, Perry explica a maneira como as empresas
farmacêuticas não só catalogam e definem seus produtos com sucesso, tais
como o Prozac ou o Viagra, mas definem e catalogam também as condições que
criam o mercado para esses medicamentos. Sob a liderança de marqueteiros da
indústria farmacêutica, médicos especialistas e gurus como Perry sentam-se
em volta de uma mesa para "criar novas idéias sobre doenças e estados de
saúde". O objetivo, diz ele, é fazer com que os clientes das empresas
disponham, no mundo inteiro, "de uma nova maneira de pensar nessas coisas".


O objetivo é, sempre, estabelecer uma ligação entre o estado de saúde e o
medicamento, de maneira a otimizar as vendas.


Para muitos, a idéia segundo a qual as multinacionais do setor ajudam a
criar novas doenças parecerá estranha, mas ela é moeda corrente no meio da
indústria. Destinado a seus diretores, um relatório recente de Business
Insight mostrou que a capacidade de "criar mercados de novas
doenças"traduz- se em vendas que chegam a bilhões de dólares. Uma das
estratégias de melhor resultado, segundo esse relatório, consiste em mudar
a maneira como as pessoas vêem suas disfunções sem gravidade. Elas devem
ser "convencidas" de que "problemas até hoje aceitos no máximo como uma
indisposição" são "dignos de uma intervenção médica". Comemorando o sucesso
do desenvolvimentode mercados lucrativos ligados a novos problemas da
saúde, o relatório revelou grande otimismo em relação ao futuro financeiro
da indústria farmacêutica: "Os próximos anos evidenciarão, de maneira
privilegiada, a criação de doenças patrocinadas pela empresa".


Dado o grande leque de disfunções possíveis, certamente é difícil traçar
uma linha claramente definida entre as pessoas saudáveis e as doentes. As
fronteiras que separam o "normal" do "anormal" são freqüentemente muito
elásticas; elas podem variar drasticamente de um país para outro e evoluir
ao longo do tempo. Mas o que se vê nitidamente é que, quanto mais se amplia
o campo da definição de uma patologia, mais essa última atinge doentes em
potencial, e mais vasto é o mercado para os fabricantes de pílulas e de
cápsulas.


Em certas circunstâncias, os especialistas que dão as receitas são
retribuídos pela indústria farmacêutica, cujo enriquecimento está ligado à
forma como as prescrições de tratamentos forem feitas. Segundo esses
especialistas, 90% dos norte-americanos idosos sofrem de um problema
denominado "hipertensão arterial"; praticamente quase metade das
norte-americanas são afetadas por uma disfunção sexual batizada FSD
(disfunção sexual feminina); e mais de 40 milhões de norte-americanos
deveriam ser acompanhados devido à sua taxa de colesterol alta. Com a ajuda
dos meios de comunicação em busca de grandes manchetes, a última disfunção
é constantemente anunciada como presente em grande parte da população:
grave, mas sobretudo tratável, graças aos medicamentos. As vias
alternativas paracompreender e tratar dos problemas de saúde, ou para
reduzir o número estimado de doentes, são sempre relegadas ao último plano,
para satisfazer uma promoção frenética de medicamentos.


Quanto mais alienados, mais consumistas



A remuneração dos especialistas pela indústria não significa
necessariamente tráfico de influências. Mas, aos olhos de um grande número
de observadores, médicos e indústria farmacêutica mantêm laços extremamente
estreitos. As definições das doenças são ampliadas, mas as causas dessas
pretensasdisfunçõ es são, ao contrário, descritas da forma mais sumária
possível. No universo desse tipo de marketing, um problema maior de saúde,
tal como as doenças cardiovasculares, pode ser considerado pelo foco
estreito da taxa de colesterol ou da tensão arterial de uma pessoa. A
prevenção das fraturas dabacia em idosos confunde-se com a obsessão pela
densidade óssea das mulheres de meia-idade com boa saúde. A tristeza
pessoal resulta de um desequilíbrio químico da serotonina no célebro. O
fato de se concentrar em uma parte faz perder de vista as questões mais
importantes, às vezes em prejuízo dos indivíduos e da comunidade. Por
exemplo: se o objetivo é a melhora da saúde, alguns dos milhões investidos
em caros medicamentos para baixar o colesterol em pessoas saudáveis,
podemser utilizados, de modo mais eficaz, em campanhas contra o tabagismo,
ou para promover a atividade física e melhorar o equilíbrio alimentar.


A venda de doenças é feita de acordo com várias técnicas de marketing, mas
a mais difundida é a do medo. Para vender às mulheres o hormônio de
reposição no período da menopausa, brande-se o medo da crise cardíaca. Para
vender aos pais a idéia segundo a qual a menor depressão requer um
tratamento pesado, alardeia-se o suicídio de jovens. Para vender os
medicamentos para baixar o colesterol, fala-se da morte prematura. E, no
entanto, ironicamente, os próprios medicamentos que são objeto de
publicidade exacerbada às vezes causam os problemas que deveriam evitar.


O tratamento de reposição hormonal (THS) aumenta o risco de crise cardíaca
entre as mulheres; os antidepressivos aparentemente aumentam o risco de
pensamento suicida entre os jovens. Pelo menos, um dos famosos medicamentos
para baixar o colesterol foi retirado do mercado porque havia causado
amorte de "pacientes". Em um dos casos mais graves, o medicamento
considerado bom para tratar problemas intestinais banais causou tamanha
constipação que os pacientes morreram. No entanto, neste e em outros casos,
as autoridades nacionais de regulação parecem mais interessadas em proteger
os lucros das empresas farmacêuticas do que a saúde pública.


A "medicalização" interesseira da vida



A flexibilização da regulação da publicidade no final dos anos 1990, nos
Estados Unidos, traduziu-se em um avanço sem precedentes do marketing
farmacêutico dirigido a "toda e qualquer pessoa do mundo". O público foi
submetido, a partir de então, a uma média de dez ou mais mensagens
publicitárias por dia. O lobby farmacêutico gostaria de impor o mesmo tipo
de desregulamentaçã o em outros lugares. Há mais de trinta anos, um livre
pensador de nome Ivan Illich deu o sinal de alerta, afirmando que a
expansão do establishment médico estava prestes a "medicalizar" a própria
vida, minando a capacidade das pessoas enfrentarem a realidade do
sofrimento e da morte, e transformando um enorme número de cidadãos comuns
em doentes. Ele criticava o sistema médico, "que pretende ter autoridade
sobre as pessoas que ainda não estão doentes, sobre as pessoas de quem não
se pode racionalmente esperar a cura, sobre as pessoas para quem os
remédios receitados pelos médicos se revelam no mínimo tão eficazes quanto
os oferecidos pelos tios e tias [2] ".


Mais recentemente, Lynn Payer, uma redatora médica, descreveu um processo
que denominou "a venda de doenças": ou seja, o modo como os médicos e as
empresas farmacêuticas ampliam sem necessidade as definições das doenças,
de modo a receber mais pacientes e comercializar mais medicamentos [3].
Esses textos tornaram-se cada vez mais pertinentes, à medida que aumenta o
rugido do marketing e que se consolidam as garras das multinacionais sobre
o sistema de saúde.

(Tradução: Wanda Caldeira Brant) [email protected]



http://www.idisa.org.br/site/download/os_vendedores_doencas.pdf



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